Neste ano, além dos 200 anos da vinda da Corte portuguesa, o Brasil comemora duas datas muito mais satisfatórias: 100 anos da morte de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) e 100 anos do nascimento de João Guimarães Rosa (1908-1967). São nossos dois maiores escritores, ou formulemos assim: Machado é o maior escritor brasileiro do século XIX e Rosa é o maior escritor brasileiro do século XX. O século XXI ainda não viu o equivalente de Machado e Rosa.
É muito fácil, no entanto, discorrer sobre como Machado e Rosa são diferentes. Machado é urbano, intimista e irônico; Rosa, sertanejo, mítico e metafísico. Machado talvez não gostasse do estilo cheio de palavras difíceis e pontuações heterodoxas de Rosa. Rosa se queixou da “afetação” de Machado, embora em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras – co-fundada por Machado, que foi seu primeiro presidente – tenha cumprimentado o “ver claro e quieto” do autor de Dom Casmurro e embora sua própria literatura não deixe de ter “afetação”.
O mais importante é parar e examinar o quanto há em comum entre eles, afora sua posição no cânone literário nacional. Chamo atenção para duas coisas. Primeiro, ambos são artistas-pensadores, tanto que não diziam fazer “romance” no sentido tradicional, “romance de costumes”, e sim “romance de análise” (Machado) e “contos filosóficos” (Rosa). Não estavam interessados apenas em narrar uma historinha superficial, mas em revelar correntes profundas, universais, do comportamento humano. Não temo afirmar que, nesta terra de escassos pensadores, e com a licença de Pelé e Tom Jobim, Machado e Rosa foram nossos dois únicos gênios.
Segundo, ambos são artistas-pensadores que se dedicaram a pensar o Brasil. Não para lhe dar uma “identidade” ou “síntese”. Sempre rejeitaram esse conceito essencialista de que a arte deve resumir uma cultura nacional. Mas pensaram o Brasil porque mergulharam nos microcosmos em que cresceram e viram neles toda sua riqueza de implicações. Machado, que dizia que o “instinto de nacionalidade” é um “certo sentimento íntimo”, escreveu sobre a transição de mentalidades envolvida na troca da monarquia pela república, criticando o fato de que grupos de poder se alternam sem que a estrutura mude. Rosa, que dizia que a “brasilidade” é “indefinível”, escreveu sobre um país à margem da civilização, iletrado, que oscila entre o arcaico e o moderno. Ambos admiravam os “bons instintos” (Machado) do brasileiro, mas criticaram o atraso do país, muitas vezes justificado como preservação desses bons instintos.
Eruditos, leitores da Bíblia e de toda a literatura universal, criadores de linguagem que trouxeram experimentos inéditos para a prosa brasileira, preocupados sobretudo com as dualidades da vida, eles examinaram a alma difusa dos indivíduos em geral e dos brasileiros em particular. Não por acaso, escreveram com conto de mesmo nome, O Espelho, em que os personagens procuram por sua figura e jamais a vêem nítida… Tomara que o Brasil utilize as efemérides para se enxergar mais profundamente nesses dois grandes espelhos literários.
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😉
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nossa, se soubesse o quanto tenho a dizer sobre isso. pais que não lêem geram filhos que não lêem. eu conheço uma pessoa que disse que ler enlouqueceu um parente e que ler não faz bem, e é alguém relativamente informado. triste isso. e eu acho que as escolas não estimulam. sem foco a idade, visão de classe social, não consegue se indicar um livro que aumente o interesse. lembro que me indicaram aos 10 anos, me obrigaram na verdade que eu lesse luzia homem. desde quando uma criança consegue gostar de um livro como esse. eu peguei gosto pela leitura lendo agatha christie e nem sempre os caminhos mais óbvios são os que fazem mais ler. bom, assunto pra páginas e páginas. parabéns pelo blog. beijos, pedrita